O tango brasileiro, muitas vezes apontado por musicólogos como uma variante mais bem cuidada do maxixe, constituiu o gênero menos popular e por isso mesmo de trajetória mais curta no panorama da música urbana do Brasil, desde sua criação na segunda metade do século XIX até seu inglório desaparecimento em inícios do século XX.
Embora a bibliografia sobre o tango brasileiro seja praticamente inexistente, a maioria dos autores que se referem a esse tipo de música (na maioria das vezes falando de Ernesto Nazareth, dado erroneamente como seu criador) concordam em que o tango ou tanguinho seja uma adaptação da havanera, ou habanera, introduzida no Brasil pelas companhias de teatro musicado europeu no século XIX, á qual logo se incorporaram elementos das duas músicas de dança de maior popularidade da época, a polca e a schottisch.
Dessa fusão de gêneros de música de teatro ligeiro e de danças estrangeiras em processo de abrasileiramento pela ação de conjuntos populares encarregados de executá-las em festinhas de casas de família, e em bailes populares, teria surgido o tipo de música de andamento rápido que acabaria se fixando numa forma tipicamente instrumental, sob o nome de tango brasileiro.
Segundo o Maestro Batista Siqueira, o responsável pelo lançamento do nome tango para designar o tipo de música de teatro ligeiro chamada de preferência pelos compositores franceses e espanhóis de habanera, ou havanera, seria o maestro carioca Henrique Alves de Mesquita (1830-1906).
Ao adaptar duas habaneras espanholas da peça O jovem Telêmaco, encenada em 1871 no Rio de Janeiro pela Companhia de Zarzuelas Esapanholas, Henrique de Mesquita, lembrando-se da existência de um tango chanson avanaise lançado pelo francês Lucien Boucquet em 1863 na peça L'íle de calypso, teve a idéia de classificar as músicas de Tango do jovem Telêmaco e Tango do calipso. E ainda em 1871 se encarregaria ele mesmo de confirmar o nome como distintivo de um novo gênero de música ligeira, ao lançar a composição de sua autoria Olhos matadores, acompanhada da indicação tango brasileiro*.
Assim, quando no ano seguinte, 1872, Henrique de Mesquita incluiu um segundo tango na partitura da mágica de Eduardo Garrido Ali Babá, estava aberto o caminho para que o pianista Ernesto Nazareth pudesse lançar em 1879 com a polca Cruz, perigo! a música que o crítico Andrade Murici classificaria como "o seu primeiro tango, pelo que apresenta de indícios precursores do gênero em que realizou as suas obras mais características, e a que chamou tango brasileiro"**.
Na verdade, Ernesto Nazareth, que estreava como compositor aos quatorze anos, em 1877, com a polca Você bem sabe, dedicada a seu pai, levaria nada menos de quinze anos compondo valsas, polcas e polcas-lundus, até se dispor a usar pela primeira vez o nome tango numa música sua, o que só se deu em 1893, com a polca-tango Rayon d'or e o famoso tango Brejeiro.
Ernesto Nazareth |
"O que Ernesto Nazareth fez foi dar ênfase aos gruposrítmicos excepcionais da música brasileira, já empregados abundantemente, por autores antigos, como podemos ver em Calado, Chiquinha Gonzaga e até no velho autor de nosso Hino nacional, Francisco Manuel, no Lundu da Marrequinha".
A criação do tango brasileiro por um músico semierudito como Henrique Alves de Mesquita (ele foi autor de uma ópera-cômica intulada Uma noite no castelo, em 1879) e sua estruturação definida pelo elaborado pianista Ernesto Nazareth seriam responsáveis, afinal, por um certo carater de virtuosismo instrumental do novo gênero, que o tornaria mais para ser ouvido do que para ser dançado ou cantado.
Embora cultivado durante os últimos vinte anos do século XIX por quase todos os compositores populares de uma certa cultura musical - Chiquinha Gonzaga dá como título a uma de suas peças de 1880 o nome Tango brasileiro - , o tango continuaria como um tipo de música fora do gosto das grandes camadas urbanas, muito mais idenficadas como a polca, ao ritmo da qual podiam dançar, e com as modinhas, ao som das quais cantavam derramadamente as suas queixas de amor.
De fato, o nome tango só começou a aparecer, ligado a músicas cantadas, a partir da segunda metade da década de 1880, em quadros do teatro de revista, mas na maioria das vezes encobrindo sob essa indicação composições que nada mais eram do que lundus-canções ou maxixes.
Isso aconteceu pela primeira vez em 1885, quando, na revista Cocota, estreada no Teatro Santana, do Rio de janeiro, na noite de 6 de março, os autores da peça, Artur Azevedo e Moreira Sampaio, faziam o antigo cambista de teatro Felipe de Lima cantar o tango Araúna, depois mais conhecido por Chô Araúna:
"Chô, chô, araúna.
Não deixa ninguém te pegar
Arauna..."
Comparado com os tangos para piano de Ernesto nazareth, o Araúna nada tinha em comum com sua forma erudita, apresentando-se antes como um lundu amaxixado, que conseguiria o prodígio de parecer, ao mesmo tempo, dolente e buliçoso.
Aliás, como para querer demonstrar que o nome tango, transformado em moda pelos compositores populares de melhor nível musical, começava a servir para designar arbitrariamente qualquer gênero de música de canto e dança de ritmo mais ou menos vivo, o próprio Artur Azevedo lançaria quatro anos depois, na sua revista A república, de 1890, um tango que intitulava Fadinho da Sabina.
Esse tango, também conhecido como As laranjas da Sabina, contava a história da revolta dos estudantes de medicina do Rio de Janeiro contra a retirada da vendedora de laranjas da porta da faculdade, Rua da Misericórdia, e quando o autor da música, Francisco de carvalho, intitulava-a de Fadinho, estava querendo indicar que no seu ritmo de 2/4 se escondia de fato mais um típico lundu-canção da época.
Aliás, se fosse necessário acrescentar outra prova, seria ainda o teatro musicado carioca que a forneceria em 1897 com o exemplo do tango brasileiro de Chiquinha Gonzaga Gaúcho, composto para a revista Zizinha Maxixe, do autor Machado Careca. O tango de Chiquinha se destinava a um número de dança do corta-jaca, denominação esta por sua vez muito vaga, e no caso desse Gaúcho servia apenas para distinguir mais um maxixe cantado.
Dessa forma, a não ser excepcionalmente, em casos de tangos de Ernesto Nazareth, para alguns dos quais Catulo da Paixão Cearense faria letras - Brejeiro, em 1912, e Favorito, na mesma época - esse nome lançado na segunda metade do século XIX chegou aos 1900 designando sempre os mais diferentes gêneros de música cantada, inclusive carnavalesca.
A cançoneta amaxixada Vem cá mulata de Arquimedes de Oliveira, que após sucesso no carnaval de 1906 foi transformada num quadro da revista O maxixe, estreada no Teatro Santana, do Rio de janeiro, a 30 de março daquele ano, aparecera em disco Odeon, da casa Edison, com indicação de tango-chula.
Seis anos depois, outro maxixe surgiu no teatro musicado com a opereta de Luis Peixoto e Carlos Bittencourt Forrobodó, levado a indicação de tango: era o excelente Não se impressione, da Mestrina Chiquinha Gonzaga, de 1912, que acabaria conhecido simplesmente por Forrobodó, ou Forrobodó de massada:
"Forrobodó de massada
Gostoso como ele só
É tão bom como cocada
É melhor que pão-de-ló.
Forrobodó de massada
Gostoso como ele só
Chi! a zona está estragada
Meu deus, que forrobodó"
Ao que se acresentava o estribilho com o remexido típico do maxixe:
"Tem enguiço, tem feitiço,
na garganta faz um nó.
Então, seu guarda, o que é isso,
Meu Deus, que forrobodó.
Mas então, pelo que eu vejo
Não apanho um frango só,
Eu vejo que já não vejo,
Meu Deus, que forrobodó!".
O fato é que, a partir dessa primeira década do século XX, o nome tango serviria, sucessivamente, para indicar o gênero de músicas gravadas por bandas com características marciais (caso do tango Capital federal, conforme se ouve no disco Odeon, selo vermelho número 40 776), polcas-dobrados, de ritmo algo amaxixado (como o tango Feniano, gravação Odeon, selo amarelo número 108 638), polcas-maxixes (como o tango Hilda, gravado na Odeon pela banda Escudero, selo amarelo número 108 828) ou simplesmente polcas puladas (como a música do Maestro Costa Junior intitulada Tango da sogra, gravada pela Banda Columbia, em disco Columbia, selo verde número B-170).
Da mesma forma, ao passar a designar com regularidade músicas cantadas, a partir da segunda metade da década de 10, as indicações tango e tanguinho já encobriam apenas novos estilos de canções para as quais ainda não se havia criado um nome mais sugestivo.
Em 1918, por exemplo, o tanguinho Viola cantadeira, de Marcelo Tupinambá, soava na realidade como uma polca-choro em que uns toques de música caipira faziam adivinhar a canção sertaneja inspirada nos gêneros da área das modas de viola. Particurlamente que, aliás, poderia ser comprovada menos de dez anos depois, com o lançamento, por exemplo, do tango Caboquinha, de Alfredo Gama, cantado pelo tenor Pedro Celestino, que era inegavelmente uma cantiga sertaneja estilizada.
Durante a década de 20, finalmente, quando o nome tango ainda é usado com frequencia, antes de desaparecer de uma vez por todas, a partir dos anos 30, a falta de imaginação dos compositores de canções ainda o usaria para designar dois novos estilos: a canção romântica herdeira da modinha (o tango-fado Luar de paquetá, de Freire Junior, sobre versos do poeta Henrique Fontes, de 1922) e a canção dramática estilo Vicente celestino (o tango Pobrezinho, de Joubert de Carvalho, gravado em 1927 por Pedro Celestino).
No início de 1930, a moda do tango argentino no Brasil, tornando ambíguo o uso dessa palavra como indicadora de gênero de música brasileira, contribuiu para fazer desaparecer, afinal, a indicação que nunca tivera sentido em termos de música cantada. O que tantas vezes fora chamado de tango passava, desde então, com muita propriedade, a receber os nomes de canção e de canção sertaneja.
* - As pesquisas no sentido de identificar henrique Alves de Mesquita como "verdadeiro criador do tango brasileiro" devem-se ao Maestro Batista Siqueira, que afirmava em sua biografia daquele músico no livro Três vultos históricos da música brasileira ter sido Ernesto Nazareth "o sistematizador genial" do novo gênero.
** - Murici, Andrade, artigo in Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, de 17 de março de 1963.
Fonte: José Ramos Tinhorão - A Pequena História da música Popular (6a edição)