Última foto de Ernesto Nazareth, extraída de seu prontuário médico (fotógrafo não identificado).
Coleção Maestro Mozart de Araújo – Centro Cultural Banco do Brasil.
...A julgar pelas informações disponíveis, Nazareth foi acometido por uma forma grave de neurossífilis – a “taboparalisia” ou “sífilis maligna quaternária” –, acompanhada de grave perturbação do estado mental, razão de ser de sua internação, em 10 de julho de 1932, no Pavilhão Guinle do Hospício (Hospital) Nacional de Alienados (antigo Hospício de D. Pedro II), situado na Praia Vermelha (antiga Praia da Saudade).² Ao que tudo indica, o diagnóstico foi firmado a partir da análise do liquor (líquido cefalorraquidiano). Vale assinalar que, quando de sua internação, o compositor já apresentava surdez avançada, manifestação clínica descrita em casos de neurossífilis.
A sífilis é uma doença infecciosa, sexualmente transmissível, causada por uma bactéria de configuração helicoide, o Treponema pallidum. No Brasil, sua alta prevalência, na primeira metade do século XX, pode ser ilustrada pelas palavras do historiador Tobias Barreto que, referindo-se em O Jornal (20/1/1927) aos “três agentes destruidores da sociedade brasileira”, menciona a sífilis, o cupim e a formiga, que destruíam, respectivamente, o homem, a casa e a terra. É forçoso reconhecer, porém, que, em face da elevada prevalência da doença, bem como do caráter variado de suas manifestações clínicas, comuns a outras afecções, os médicos, de forma até certo ponto justificável, tendiam a pensar “sifiliticamente”, não obstante incorressem no risco de, equivocadamente, formular o diagnóstico de neurossífilis em pacientes não contaminados pelo Treponema pallidum, mas acometidos por distúrbios neuropsiquiátricos os mais diversos. Seja como for, mesmo em face do diagnóstico correto, os tratamentos antissifilíticos utilizados naquela época eram por demais agressivos, baseando-se na administração de medicamentos à base de arsênio – Salvarsan (606), introduzido em 1910, e seu sucedâneo menos tóxico, Neosalvarsan (914), introduzido em 1912 – e, particularmente nos casos de neurossífilis, na malarioterapia, visto que a penicilinoterapia tornar-se-ia disponível somente na primeira metade dos anos 1940.
A malarioterapia – tratamento de uma doença por intermédio de outra – foi introduzida, em 1917, pelo médico austríaco Julius Wagner-Jauregg (1857-1940) que, por sua descoberta, auferiu, em 1927, o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina. A técnica consistia na inoculação, em portadores de neurossífilis, de sangue contendo um dos microrganismos causadores da malária, preferencialmente, por sua menor virulência, o protozoário da espécie Plasmodium vivax, agente causal da “febre terçã benigna”. Com base nos resultados de estudos experimentais, segundo os quais o Treponema pallidumnão resiste a altas temperaturas, admitia-se que os acessos febris resultantes da inoculação doPlasmodium vivax seriam capazes de destruí-lo, a ponto de promover a cura do mal. Após um certo número de acessos febris, o paciente era medicado com o quinino, fármaco antimalárico de reconhecida eficácia.
Referindo-se à malarioterapia, em texto publicado no ano da internação de Ernesto Nazareth (O liquor após malariotherapia. Anais da Assistência a Psicopatas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1932, pág. 3), os Drs. Waldemiro Pires e Cerqueira Luz, do Serviço de Neurossífilis da Fundação Gaffrée e Guinle, afirmavam tê-la praticado, num período de seis anos, em mais de 300 casos de neurossífilis, concluindo que a técnica era “indiscutivelmente superior aos demais métodos terapêuticos, principalmente na paralisia geral”.
De acordo com Luiz Antônio de Almeida, que teve acesso ao prontuário do compositor, Nazareth submeteu-se, sem quaisquer benefícios, à malarioterapia, mesmo porque o tratamento, mal tolerado pelo paciente, na medida em que lhe provocou profunda astenia, foi prematuramente interrompido, restringindo-se à deflagração de apenas três acessos febris, número inferior ao preconizado pelos protocolos (geralmente entre 8 e 12 acessos febris). Em 19 de janeiro de 1933, o compositor recebeu alta do Hospício Nacional de Alienados; no entanto, o agravamento de sua perturbação mental motivou nova internação, em 4 de março de 1933, desta feita na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá.
No dia 1º de fevereiro de 1934, data natalícia de seu filho Ernestinho, Ernesto Nazareth fugiu da Colônia Juliano Moreira, falecendo, possivelmente, nesse mesmo dia; três dias depois, seu corpo foi encontrado, em adiantado estado de putrefação, dentro de uma represa, distante cerca de 1 km da sede da instituição. O laudo do Instituto Médico Legal confirmou a hipótese de afogamento – asfixia por submersão – mas, até hoje, não se sabe se decorrente de suicídio ou acidente. De acordo com Luiz Antônio de Almeida, o corpo de Nazareth chegou às dependências da Colônia Juliano Moreira sobre uma padiola iluminada por tochas; Ernestinho (filho), Eulina (filha) e Maria Mercêdes (professora gaúcha, amiga de Eulina), que aguardavam na administração, ficaram chocados ao depararem com o corpo do compositor que, com os braços rigidamente projetados para cima, passava a todos a impressão de estar vivo sob o lençol. A propósito, em mensagem que me enviou em 2008, o biógrafo de Nazareth reproduz importante depoimento da pianista carioca Maria Alice Saraiva (1913-2001)³ a respeito das condições em que foi encontrado o cadáver do compositor:
“O mais impressionante, na descoberta do corpo de Nazareth, foi a posição em que ele foi encontrado. Foi a Dona Mercêdes, depois confirmado a mim pela própria Dona Eulina, quem me disse que encontraram o corpo dele na posição vertical, como se estivesse de pé, dentro d’água, com as mãos para frente, como se estivesse tocando piano!...”
O aspecto do corpo de Nazareth, ao ser retirado da represa, não causaria estranheza àqueles acostumados a lidar com o cenário da morte. Isso porque, no período gasoso da putrefação, o cadáver costuma assumir aspecto gigantesco, decorrente, sobretudo, do inchaço da face, da genitália e do abdome; e, com os braços estendidos, projetados para cima ou para frente, dependendo de como o corpo é encontrado, assume a chamada “posição de lutador”, expressão habitualmente utilizada em Tanatologia Forense. No caso específico de Nazareth – e tomando por base o depoimento de Maria Alice Saraiva –, seria lícito referir-se, em vez de “posição de lutador”, a “posição de pianista”, como se, num gesto derradeiro, o genial compositor estivesse executando ao piano algumas de suas primorosas peças – como Floraux, Bambino, Quebradinha, Coração que sente ou Confidências –, seu passaporte definitivo para a imortalidade.
Ainda sobre a morte de Nazareth, vale assinalar que, na página 142 do livro Pixinguinha. Vida e Obra. (Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1997), de autoria do jornalista Sérgio Cabral, lê-se:
“Dias depois, era nomeado fiscal do Serviço de Limpeza Urbana, cargo em que permaneceria pouco tempo, pois o que Pedro Ernesto queria mesmo é que Pixinguinha organizasse a banda da Guarda Municipal. Como a função de maestro de banda não existia nos quadros administrativos da prefeitura, a solução foi admiti-lo na Limpeza Urbana, onde realmente atuou como fiscal enquanto a banda não se formava. Trabalhou inclusive no dia 4 de fevereiro de 1934, véspera do carnaval, quando levou um susto do qual nunca se esqueceu, como confessou ao contrabaixista, cantor e principal solista do conjunto vocal Os Cariocas, Luís Roberto. Naquele dia, ele fazia uma inspeção num local próximo do Instituto Médico Legal, quando um amigo e funcionário do IML lhe perguntou se desejava ver um corpo em processo de autópsia e que parecia ser de um músico, talvez amigo de Pixinguinha. Ele foi até lá e viu que o corpo, encontrado num pequeno riacho próximo à Colônia de Psicopatas Juliano Moreira (de onde fugira no dia anterior), em Jacarepaguá, era de ninguém menos do que do pianista e compositor Ernesto Nazareth. O funcionário do IML e seus colegas, provavelmente, não faziam a menor ideia de que cuidavam do corpo de um dos maiores nomes de todos os tempos da música brasileira.”
Em que pese a afirmativa equivocada de que Nazareth fugira da Colônia Juliano Moreira “no dia anterior”, ou seja, no dia 3 de fevereiro – e não no dia 1º, como de fato aconteceu –, a passagem supracitada reveste-se de forte simbolismo, como se o encontro acidental de dois dos maiores ícones do choro – um deles com apenas 36 anos, em pleno vigor físico e mental, e o outro recém-falecido, estendido numa mesa de autópsia – necessário se fizesse para que Pixinguinha recebesse, ao modo do atleta olímpico que recebe o bastão na corrida de revezamento, uma espécie de convocação íntima para persistir cultivando, com seu invulgar talento, esse brasileiríssimo gênero musical que tanto nos seduz.
fonte: http://www.clubedochorodebh.com.br/
Por Luiz Otávio Savassi Rocha